quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Rita Bittencourt - AS LÁGRIMAS DE MARIA - "Soco no Estômago"

    " Ela se escondeu sob o pedaço de bolo. Deixei. Sorvi o café quente que desceu pela goela queimando, indo parar no oco do estômago. Como um soco, quente, visceral. Engoli de dor, duma vez só, aquela quentura redonda... Errei na dose do gole e na avaliação da quentura. Tenho que tomar mais cuidado. As lágrimas na beira de cair... Aí, talvez para amenizar o impacto da dor, cortei um pedaço grande de bolo com o garfo e o lançei à boca na tentativa de amenizar o estrago. Enquanto rolava a maçaroca de bolo solado na boca, a vi. Machuquei-a quando cortei o bolo. Pequena, tanto, que se não estivesse de óculos não a teria visto. Lentes potentes, quatro graus... Ela se apoiou  nas pernas dianteiras, feito cachorro sentado. A cabeça grande, desproporcional, sem sustentação. Como um balão de gáz, lenta, pendia, ora pra um lado, ora para outro, tonta. Engoli  o bolo duma vez só. Desceu rasgando, querendo fechar a glote. Mas, naquele momento minha atenção desviara-se de meus desvarios gastronômicos e concentrava-se nela. Tão pequena... Tentou andar, pareceu-me arrastar as pernas traseiras como se só as da frente tivessem força, tentando carregar o corpo morimbundo. Quis ajudar mas meus dedos, naquela hora, tão grandes e pesados, recuaram por si. O estrago seria maior. Fiquei olhando aquela luta inglória, o jeito desesperado, a desolação, a solidão da formiga morrendo ao lado do garfo brilhante, do bolo compacto, gigantes estáticos. Será que ela me via? Olhos verdes assustadores, ventas arfantes? Boca, crateta aberta de espanto? Devo ter sido um ET, o gigante temido, o bicho materializado, terror de sua vida e de sua morte. Aí a cabeça pendeu para a direita, lentamente, e ficou, por momentos, parada, até tombar, finalmente. As patas encolheram-se e embolaram-se junto à cabeça enorme. Estava morta.
Não consegui terminar o café. O prato branco realçou a formiguinha comedora de açúcar, pontinho negro, enconchado. Levantei-me da mesa com um nó na garganta, uma dor no estômago, uma náusea doce, ondulante. Não sei se foi o café quente, o bolo massudo e mal ingerido, aquela morte gratuita, da formiguinha... Não sei... Ou sei?"

Mortes gratuitas... Quantas, ainda, teremos que assistir?