quinta-feira, 26 de junho de 2014

"kOMBI DE MUDANÇAS" - Rita Bittencourt

 
 
         Tenho todos os motivos para nostalgia, para o choro, para revirar os baús... Hoje dirigi, chorando, atrás de uma Kombi de mudanças - é, elas ainda existem. Lembrei-me das minhas conversas com o Edson e da dialética que um carro desses gerava entre nós. Eu, sempre nostálgica divagava entre o que estavam sentindo... Aquela família encarapitada na carroceria, uma mãe e umas crianças na boleia quase abraçados, uma certa tensão. O motorista cuidadoso e devagar. O que parecia o pai, às vezes com um, dois  garotos maiores que pareciam filhos, tentavam segurar colchões teimosos e trouxas de roupa pulando lá atrás. Um fogão, uma geladeira velha, umas guardas de cama, umas cadeiras toscas uma televisão magistralmente repousada no colo do pai, segurando-a com uma mão, deixando a outra para as eventualidades... Nessa mudança uma bandeira do Brasil tremulava na mão de um dos meninos e uma gravura de Mona Lisa, emoldurada de negro, sem vidro, tinha o seu sorriso enigmático transpassado pelo que parecia uma vara de pipa pois a cauda, de papéis de seda verde e amarelo, serpenteava ao vento saindo de trás do quadro. Os olhares atentos para que nada se perdesse. Não nos olhavam, olhavam o infinito atrás de nós ou o futuro à frente. E eu pensava e dizia para o Edinho quando isso acontecia e aplicava-se perfeitamente à situação de hoje:
-Acho que não nos olham porque têm vergonha.
-Né não, é o vento que não os deixa fitar. O vento corta o olhar - dizia ele.
- Parece que é tudo o que têm...
- Mas eles estão juntos, a família está unida - dizia ele.
- É, mas são tão pobres...
- Mas parecem felizes. Vê-se expectativa, zelo, esperança...
- Estão tão sujos...
-Mas estavam trabalhando na mudança. Lembra-se das nossas? Lembra-se do quanto você trabalhava  para embalar os cristais e as porcelanas, coisa que não deixava ninguém fazer? Ficava com a roupa imunda, o nariz sujo de pó, com os cabelos duros e linda, assim...
- Lembro-me... Eu ficava tão feliz com nossas mudanças. Tenho alma cigana...
- Pois é... e arrumar a casa nova? Não era tão bom? E dormir no chão no meio das caixas sobre um edredom? Fazer amor no chão? É o máximo!
 - É mesmo, meu amor...
- Não fique triste, eles estão bem - concluía.
E segui aquela Kombi atabalhoadamente, instintivamente, automaticamente, lágrimas caindo, anuviando  o caminho e quando me dei conta enveredava-me pela entrada do Morro do Dendê. Sem ter como recuar, ruela estreita, segui-os até parar pra perguntar como voltava pois já estava lá em cima. A vista, maravilhosa! O povo todo solícito veio me ajudar e crianças enfiavam as carinhas pela janela, curiosos, em algazarra. A Kombi perdeu-se, como uma cobra gorda, subindo a ladeira... Voltei chorando de emoção e de saudade. Todos tão felizes. Pobres e felizes como você dizia...
Obrigada por ter me ensinado tantas coisas... Obrigada, amarei você sempre, meu amor!