terça-feira, 30 de junho de 2015

MEU LUGAR... - Rita Bittencourt

Há  tempos atrás, sobrevoávamos o Rio, eu e o Edinho, pra pousar no Santos Dumont. E tudo era tão grandioso e belo, e inatingível, e distante que, tomada de nostalgia comecei a falar com meu marido: Sabe, amor, não sei a que lugar pertenço... Já fui de tantos, já quis ser de tantos, já estive em tantos e moramos aqui... No entanto não sei se esse é o meu lugar...
-Como assim? - ele me perguntou.
- Amo o Rio, mas não é minha pátria, entende?
- Amo Roma, conheço suas ruelas, mas não me pertencem, não pertenço a elas... conheço o Coliseu, entende? Já vi leões devorarem homens corajosos ou acuados...
- Entendo...
- Em Paris, ouvimos Piaf cantando, quando lhe visitamos o túmulo, lembra-se? Nos abraçamos emocionados...
- Que mulher fascinante!
- Apaixonei-me por campos floridos de girassóis e lembrei-me da agonia de Van Gohg... Lágrimas me vieram ao olhos. Você me beijou...
-Fomos ao Túmulo de Madalena... Abóbadas grandiosas penderam sobre nossas cabeças...
- Verdade...
- Túmulo de Evita - onde Evita não está - vimos. Túmulos devassados com caixões expostos... A decadência da morte explorada aviltantemente... Ricoleta, Argentina...
- Macabro. Não gostei, você disse. Eu também não...
- As fotos, tantas... Não sabemos a onde pertencem... Temos o ímpeto de tira-las para  não nos esquecermos mas nos esquecemos de que lugar  foram... Trocamos os santos das igrejas, os monumentos e nos esquecemos onde compramos aquela bolsa poderosa que custou quase um carro, que usei algumas vezes e a guardei num closet, feito uma relíquia...
- E nossa chegada a Portofino, com os sinos da igreja tocando um clássico que nossa ignorância musical não nos permitiu identificar? Gravei na nossa filmadora que foi roubada... Estávamos tão felizes. O mar azul de Portofino, é azul petróleo... Mar mais lindo nunca vi!
- E a Gruta Azul de Capri? Azul turquesa... Você me deu um colar de corais. Fininhos como gravetos...
- O túmulo de Grace Kelly... Como pode aquela mulher linda e cheia de vida estar escondida alí, naquela lápide? Mônaco... Não jogamos no Cassino mas vimos uma mulher oriental perder  vinte mil dólares em cinco minutos. E continuou a jogar...
- E a Gruta de Maquiné, em Minas? Cheia de estalactites... Você segurando mamãe que, espantada com o íngrime do "adentramento", queria voltar... Mas foi até o fim!  Caverna escura e tortuosa cheia de punhais brancos que pendiam do teto...
E o Corvado, O pão de Acúcar, a Vista Chineza e tudo o mais? O Convento da Penha, em Vitória, na  minha terra, na verdade, Vila Velha? E tudo o mais que vimos, que não vimos, nem veremos, talvez você, veja daí , do seu céu de anjos?...
Eu, não quero mais... Acho que a gente andava escolhendo um lugar pra morrer abraçados...
E VENEZA, MEU AMOR, QUE AMEI, AMEI, AMEI? Gôndolas, canções, poesia... Restaurantes escondidos em vielas, escondidas por ruelas aguadas de mar... Homens bonitos nos espreitando para levar-nos ao paraíso... Você, sempre desconfiado, eu, mais afoita, você me convencendo de que poderia ser uma armadilha... E a gente saia correndo de mãos dadas, como se fugisse, fingindo estar sendo perseguidos por piratas...
E as cerejas rubras, de murano, que comprei todas, e o vendedor se espantou? Mais de cem... Os homens soprando o murano, na Ilha?
 
Já fizemos tantas loucuras! E rezávamos em todas as igrejas, mas a melhor reza foi em Assis, em 2000, eu rezando em voz alta pensando que só havia estrangeiros... Quando terminei de rezar foi um coro de AMÉM!!! Brasileiros ouvindo meus segredos , pois foi uma confissão, ano do Jubileu, onde nossos pecados, todos, seriam perdoados, se passássemos em cinco portais - portas principais, só abertas em ocasiões especiais...   Rimos, gargalhamos e saímos de lá, abençoados, fãs de São Francisco, um jovem e nobre homem que escolheu ser pobre, servir a Deus, mas interpretou, literalmente, a fala de Deus e construiu uma igreja, quando a igreja que Deus falava era a igreja de um novo "pensar e ver"... Mas ele construiu e pronto, deve ter aprendido! Pelo menos ficaram com um templo pra rezar... e cuidar dos bichinhos. Às vezes, nos grandes apertos rezo pra ele e - "pá pimba"! - sou atendida! Sei que ele acha que sou um animalzinho inquieto cumprindo o ritual de virar gente... Quem sabe?
Mas, essa introdução tão grande, que seria maior ainda, se eu seguisse meu ímpeto de escrever, é só pra dizer, sei lá, pra escolher, o lugar ao qual pertenço. Naquele tempo não sabia e não sabia, ainda, hoje!
Mas sei que pertenço ao mar azul do Rio, ao seus relevos e montanhas, a seu ar cosmopolita, à sua urbanidade generosa. Pertenço às ruas enladeiradas de São Paulo - como amo São Paulo! - às íngremes subidas e descidas de Belô. Pertenço à Vitória , minha terra, aos confins da Bahia, onde terminei de criar-me. Mas também pertenço às terras áridas que o sol torra, gretada, coalhada de animais mortos. Pertenço ao Nordeste com a persistência da enxada, "arando" a terra cheia de esperança. E às famílias grandes, cheias de meninos barrigudos, prenhes de mandioca e calangos, e terra barrenta e amarelão.
Pertenço às florestas úmidas, às estrelas cadentes, à lua cheia, às tempestades, às aguas que correm acima das calçadas,  à grama molhada de orvalho. Pertenço ao breu da noite, ao grito que ecoa nela, e gela entranhas. Pertenço às gargalhadas das mulheres noturnas, aos sons da sirenes que rasgam o espaço, apertando o peito. Sirenas são sempre mau auspiciosas... Alguém sempre está por morrer, alguém, sempre, está por perder... Mas , às vezes, está por nascer... É preciso cuidado pra julgar... Melhor dizer, " vai com Deus"...
Também pertenço ao canto que reverbera nas naves das igrejas, qualquer delas, pois meu Deus é universal!
Pertenço aos meus santos, a da Conceição, à Rita, à Catarina, aos anjos, à Deus, à Iemanjá, que um dia uma mulher parou-me na rua e pediu que não cortasse meus cabelos. Eram de Iemanjá. Cortei curtos. Danou-se! Prefiro não falar... Deixei-os crescerem...
Pertenço a você, meu amor!
Por isso, AGORA, antes não sabia,  pertenço ao Rio de Janeiro, onde você estará para sempre e onde temos nosso local de encontro.
Até um dia, espero que seja breve, meu amor!